Se eu girasse a chave poderia reviver as coisas todas, sabia que durante todos esses anos ninguém tinha entrado na casa, que poderia estar tudo do mesmo jeito que a tinha deixado, os livros, as cadeiras, os discos de vinil, tudo, tudo estaria lá, guardando a memória dos momentos lá vividos por mim e por todos que por lá passaram.
Já no portão, pude perceber que a ação do tempo tinha sido generosa, apenas um pouco de ferrugem e um resto de limo seco entre a parede e o suporte, a tinta preta um pouco descascada e mais nada.
Uma grama tímida tinha tentado romper os frisos da calçada mas parece ter desistido antes de se tornar uma erva sem importância e morrido há algum tempo que não se sabe quando.
A poeira na entrada e mais nada, a não ser penas de pardal e um filhote morto no canto, sendo arrastado por formigas marrons e agitadas.
Estava ainda na dúvida se teria mesmo que entrar, se minha vida poderia voltar a ser como era antes, com filhos correndo pelo corredor e Maria entrando nervosamente com sacolas do supermercado para compensar o atraso do almoço, a TV ligada e abandonada na sala, brinquedos largados próximo a porta dos quartos e a algazarra das férias tomando conta das paredes sem se incomodar com os vizinhos...
Lembro-me de que antes de sair uma rachadura entre a porta da sala e da cozinha tinha sido motivo de discussão com Ana a ponto de ter que dormir com os meninos por umas duas noites seguidas...
Mas entrar na casa me traria de volta essas coisas?
Não! Eu sabia que nunca mais voltaria a reviver essas coisas. Não depois do acidente. Depois daquela curva. Depois do cheiro de ferro carro adentro e os gritos aterrorizantes de todos.
Essa memória infeccionava-me a mente e eu me recusava a falar sobre ele com todos.
Girei a chave, pareceu-me ouvir a TV ligada.
Pareceu-me sentir cheiro de carne assada pelo ar, cheiro de sabonete vindo do banheiro dos meninos...
Mais uma volta na chave e lá estavam todos, de roupas brancas e me esperando, sentados no sofá empoeirado.
Ana levantou os olhos e não me disse nada.
Ramon, Adla e Cássia levantaram os braços e me convidaram a sentar.
Era apenas um pesadelo! O carro não tinha derrapado na curva, não tinha dado de frente com o caminhão e os gritos de desespero não tinham sido emitidos com tanto pavor enquanto descíamos a ribanceira descontrolados e girando...
Estavam todos lá!
Ana e seus grandes olhos negros e sempre com o sorriso sincero nos lábios.
Ramon com longos cabelos cacheados e suas mãos pequenas e nervosas segurava o controle do vídeo-game.
As gêmeas estavam vestidas iguais, como sempre e se abraçavam.
Não me disseram palavra alguma, mas entendi que a luz do sol que entrava pela porta entreaberta lhes incomodava.
Sorri e isso fez com que eles sorrissem também.
Agora estou nesse lugar estranho e grito que eles precisam de mim!
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