Frente ao espelho começou a perceber o quanto estava ficando velho, isso não o incomodou, estava resignando tudo nesses ultimos dias. Tinha desistido de lutar, qualquer que fosse a batalha não mais lhe importava. Até mesmo se visse corpos pelo chão, espalhados pelo asfalto, achava que não se importaria mais.
Olhou fotos antigas em um álbum que há tempos não pegava, não sentiu saudades dos momentos que estavam ali registrados.
Não demonstrou nenhuma preocupação a ver contas e alguns resultados de seu último exame de próstata que lhe acusavam um câncer já adiantado.
Essa resignação nunca lhe havia acontecido antes em todos os seus 40 anos de vida.
Conferiu se a porta da frente estava aberta e se todas as outras estavam fechadas.
Apagou todas as luzes com exceção a da frente, próxima ao portão pequeno, que apenas encostado, esperava em vão a volta da menina.
Todo seu mundo estava alí, na esperança da volta dela, que junto com seus olhos castanhos havia levado também toda sua vida, toda sua alma, e pelo jeito pedaços dos rins, pulmões e outras partes menos expressivas.
Tomou um remédio amargo que não sabia para que servia e deitou-se sem desarrumar a cama, caso ela voltasse.
Olhos fitos no teto escuro, sentia-se culpado por não pensar em outra coisa.
A menina tinha-se ido, levado todas as coisas, as roupas, os olhos, os seios, e o mais importante: sua vida, que a ela tinha dado sem pedir nada em troca.
Quando a conheceu se martirizava por ser tão velho, mas agora estava resignado com isso também. Sempre que pensava nela e na sua ausência achava muito bom ter mais de 40 anos, estaria cada vez mais perto de morrer, se ver livre dessa dor de ter sido abandonado sem razão aparente.
A espera se confundia, queria que por aquele portão entrasse ou ela ou a morte salvadora, que a solidão, de tão cruel que é, não mata, vai torturando esperando que se confesse algo que nunca é o bastante.
O velho fechou os olhos e esperou.
O portão não rangeu durante a noite, por mais que ele tivesse imaginado ouvir seu gemido...
A morte não apareceu com sua mão fria a acariciar-lhe a calvicie.
Mas a solidão, com seus grandes dentes e lábios frios esperava ansiosamente que ele acordasse.
Ao acordar praguejou o sol, chamou de incompetente sua próstata e resolveu facilitar o trabalho da morte.
Juntou vários remédios, cerca de trinta comprimidos dos mais variados modelos e tamanhos.
Foi tomando um a um...
Sentou-se frente ao espelho e viu que estava ficando mesmo mais velho.
Foi sentindo-se sonolento e levemente tonto, um leve formigamento no braço esquerdo e o mundo a escurecer.
Olhava-se no espelho, queria ver-se morrer...
Nesse instante ouviu o portão abrir-se, reconheceu os passos da menina. Seu peito encheu-se de emoção e de arrependimento, tentou levantar-se mas a dose letal de comprimidos não lhe permitiu.
Percebeu a maçaneta girar, com a delicadeza da mão da menina.
Um cheiro de gardênia invadiu a sala, uma presença clara tomou conta de seu mundo. Seu último esforço em girar a cabeça lhe mostrou que a morte tem passos de menina, cheiro de gardênia e abre portas com delicadeza de mãos femininas.
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